quinta-feira, 19 de junho de 2008

Aniversário- Álvaro de Campos

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,

E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,

O que fui de coração e parentesco.

O que fui de serões de meia-província,

O que fui de amarem-me e eu ser menino,

O que fui ... ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...

A que distância!...

(Nem o acho...)

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,

Pondo grelado nas paredes...

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas 

lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa,

É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim...

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...

A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,com mais 

copos,

O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do 

alçado---,

As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo 

em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!

Não penses!

Deixa o pensar na cabeça!

Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Hoje já não faço anos.Duro.

Somam-se-me dias.

Serei velho quando o for.

Mais nada.Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


Álvaro de Campos- 15/10/1929

A Mário de Andrade de Ausente - Manuel Bandeira

"Anunciaram que você morreu.

Meus olhos, meus ouvidos testemunham:

A alma profunda, não.

Por isso não sinto agora a sua falta.

Sei bem que ela virá (Pela fôrça persuasiva do tempo).

Virá súbito um dia,

Inadvertida para os demais

Por exemplo assim:

À mesa conversarão de uma coisa e outra

Uma palavra lançada à toa

Baterá na franja dos lutos de sangue.

Alguem perguntará em que estou pensando,

Sorrirei sem dizer que em você,

Profundamente.

Mas agora não sinto a sua falta.

É sempre assim quando o ausente Partiu sem se despedir:

(Você não se despediu.)

Você não morreu: ausentou-se.

Direi: Faz tempo que êle não escreve.

Irei a São Paulo: você não virá no meu hotel.

Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.

Saberei que não, você ausentou-se.

Para outra vida?

A vida é uma só. A sua vida continua

Na vida que você viveu.

Por isso não sinto agora sua falta."

1945

terça-feira, 17 de junho de 2008

W.H.Haudem

Parem todos os relógios,

desliguem o telefone.

Impeçam que o cão ladre com um osso gostoso.

Silenciem os pianos, e com um rufar surdo, tragam o caixão.

Que venham os pranteadores,

Que os aviões circulem pranteando acima de nós escrevendo no céu a 

mensagem

"Ele está morto".

Coloquem grandes laços no pescoço branco das pombas,

Que os policiais usem luvas pretas de algodão.

Ele era meu Norte, meu Sul, meu Leste e meu Oeste.

Minha semana de trabalho e meu descanso dominical.

Meu meio-dia, minha meia-noite,

minha conversa, minha canção.

Pensei que o amor fosse eterno.

Estava enganado,

As estrelas são indesejadas agora

Apaguem todas,

Embalem a lua e desmontem o sol.

Esvaziem o oceano e varam o ar das florestas

Pois nada mais agora pode servir.

Procuro despir-me do que aprendi,

Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,

e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos.

Desencaixotar minhas emoções verdadeiras,

desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,

mas um animal humano que a natureza produziu.

Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),

isso exige um estudo profundo,

uma aprendizagem de desaprender.


Alberto Caeiro

Divertimentos

O primeiro olhar para fora da janela pela manhã,

O velho livro encontrado

Rostos entusiasmados

Neve, a mudança das estações

O jornal

O cachorro

A dialética

Tomar um banho, nadar

Música antiga

sapatos confortáveis

Compreender

música nova

Escrever, plantar

Viajar cantar ser amável


Bertolt Brecht

O último poema

Assim eu queria o meu último poema,

Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais,

Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas,

Que tivesse a beleza da chama em que se consomem os diamantes mais 

límpidos,

A paixão dos suícidas que se matam sem explicação.


Manuel Bandeira
"Se depender de mim ,
 
nunca ficarei plenamente maduro,
 
nem nas idéias, nem no estilo,
 
mas sempre verde, incompleto, experimental."


Gilberto Freyre
Tenho admirado bárbaros,

Corrido atrás do vento..

De noite depois do sonho, ansiedade, agonia,

Eterna sensação,

É preciso confessar.

Descontentamento, espanto, medo,

Identidade,

Humanidade, produtos,

Consciência crítica,

Sorrisos...

Saudosismo,

Consumo, nostalgia,

Metáfora, embate.


Ethel Joyce Borges Munhoz
Todos os relógios da cidade começam a girar e a tocar

Mas não deixe o tempo te enganar,

Pois o tempo não há quem conquiste.

Em angústias e preocupações a vida escoa vagamente,

e a todos o tempo há de consumir,

seja agora ou no porvir.


W.H.Anden
Amo como ama o amor.

Não conheço nenhuma outra razão para amar se não amar.

Que queres que te diga,

Além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?


Fernando Pessoa
"O amor é que é essêncial,

O sexo é só um acidente

Pode ser igual ou diferente.

O homem não é um animal.

E´uma carne inteligente,

Embora as vezes doente."


Fernando Pessoa
Posso pressentir a velhice aproximando-se de mim,

De minha pele, meus ossos,

Ela se aproxima lentamente, toma acento e de repente se faz notar,

No brilho dos olhos, no riso cansado...

Sinto um arrepio de medo quando me dou conta dessa presença.

Não quero sofrer...

Não quero a solidão...

Quero tornar-me uma pessoa melhor,

Amadurecer,

Estar pronta, preparada...

Quero repartir, compartilhar, confiar, confiar..


Ethel Joyce Borges Munhoz

Diante de uma criança

Como fazer feliz meu filho?

Não há receitas para tal.

Todo o saber, todo o meu brilho

de vaidosa intelectual

vacila ante a interrogação

gravada em mim, impressa no ar.

Bola, bombons, patinação

talvez bastem para encantar?

Imprevistas, fartas mesadas,

louvores, prêmios, complacências,

milhões de coisas desejadas,

concedidas sem reticências?

Liberdade alheia a limites,

perdão de erros, sem julgamento,

e dizer-lhe que estamos quites,

conforme a lei do esquecimento?

Submeter-se à sua vontade

sem ponderar, sem discutir?

Dar-lhe tudo aquilo que há

de entontecer um grão-vizir?

E se depois de tanto mimo

que o atraia, ele se sente

pobre, sem paz e sem arrimo,

alma vazia, amargamente?

Não é feliz. Mas que fazer

para consolo desta criança?

Como em seu íntimo acender

uma fagulha de confiança?

Eis que acode meu coração

e oferece, como uma flor,

a doçura desta lição:

dar a meu filho meu amor.

Pois o amor resgata a pobreza,
vence o tédio, ilumina o dia
e instaura em nossa natureza
a imperecível alegria.


Carlos Drummond de Andrade - 1996. "Farewell".
"Tenho pensamentos que, se pudesse revela-los,e fazê-los viver,

acrescentariam nova luminosidade às estrelas,

nova beleza ao mundo e mais amor ao coração dos homens."


Fernando Pessoa